Do grande acidente nacional
Nas horas de tristeza íntima pergunto muitas vezes por que razão o Poder não teve força no dia 25 de Abril para impor a legalidade. Porque não foram tomadas as medidas urgentes, mesmo com o recurso à força, para impedir a Revolução? Quero eu dizer que se me tornava difícil aceitar a tese do fatalismo com que muitos explicam a queda do regime. Mas lendo agora o seu Depoimento, tenho de concluir que o recurso aos meios legais não era uma solução bastante para evitar tamanha desgraça.
Portugal não estava doente, como para aí se propala. Mas a subversão de tal forma se havia infiltrado nas escolas, nas repartições e nas esferas burguesas que o espírito da mudança acabou produzir os seus frutos. Já não falo na estratégia das potências estrangeiras que manobravam contra os reais interesses do país, desacreditando o poder vigente e deturpando a realidade da situação. O brilhante panorama do Portugal de hoje [1975] mostra à evidência o alcance da traição, com a loucura a que conduziu a acção dos falsos profetas, muitos aliados do imperialismo internacional. O anseio da democracia não passou de um mito para embebedar as multidões, pois o único objectivo dos abrilinos foi o de entregar a Guiné, Angola e Moçambique com as suas indefesas populações, aos chamados movimentos de libertação.
Tínhamos, portanto, de sofrer esta grande provação, a mais trágica da vida multissecular da Nação portuguesa. Quebrou ela os valores do patriotismo, destruiu um património moral e instilou o ódio entre as classes sociais — até mesmo no seio das das famílias. O castigo foi demasiado cruel para quem não o merecia e não há vislumbre de esperança para redenção por que os portugueses tanto anseiam. Será já isto o começo da longa noite que a morte reserva aos que perderam as amarras da História? Não sou profeta, nem o pretendo ser, mas considero que Portugal virou a última página do destino e que o fez com baixeza, porque não curou do mais sagrado duma comunidade que é a vida e o futuro dos seus filhos. Quem hoje se gaba de ter encerrado o «ciclo do Império», seria melhor que se visse ao espelho da consciência que não perdoa aos néscios e aos traidores o crime que praticaram.
Eu avalio quanto o Senhor Professor não há-de sofrer quando pensa na situação actual. Mas só tem motivo para se considerar tranquilo de consciência, porque se deu de alma e coração ao nosso País, porque foi digno na sua maneira de governar e nenhuma culpa lhe podem assacar os inimigos. Nem sempre se tomaram as decisões enérgicas que o decurso da situação exigia? Permitiu-se a muitos que ocupavam altos cargos políticos a traição que eram incapazes de dissimular? Foi-se longe de mais no jogo da tolerância com os adversários do regime? Nada disso pode atingir o Senhor Professor que salvaguardou o respeito pelos valores fundamentais e nunca recorreu a métodos lesivos dos direitos humanos. Ao contrário do que fazem agora os libertários do 25 de Abril e do 28 de Setembro. Dá-me pois vontade de sorrir quando ouço a mentira constantemente repetida de ser «fascista» o antigo regime. Se o fosse realmente não teria soçobrado de maneira tão ingénua pois usando as medidas ao seu dispor ter-se-ia batido e, sem dúvida, ganho a batalha da revolução.Joaquim Veríssimo Serrão, «IX. Carta do autor ao Professor Marcello Caetano, Lisboa 12.Fev.75», in «Correspondência com Marcello Caetano», 2.ª ed., Lisboa, Bertrand, 1995, pp. 29-30.
Fotografias:
Creche, Angola, ant. 1974. S.E.I.T., s/ n.º, cx. 453, env. 1, por gentileza do Sr. Ant.º Fernandes.
Portugueses retornados de África, Lisboa, 1975. Alfredo Cunha, in Público, como ilustração duma qualquer história de sucesso que alguém quis contar.