Da façanha que supera todas as proezas de sua época
Não, homem da rua que me leres. Ao passares pelo monumento que exalta a memória do grande capitão que foi Fernão de Magalhães, não voltes a cara com desprezo. Porque aquele bronze não representa apenas uma homenagem do Chile a um grande navegador que, «atraiçoando Portugal», se teria limitado ao descobrimento das costas da América do Sul. Aquela figura simbólica sintetiza feitos como o de Gama, aliados aos de Albuquerque, os quais não interessaram só à Espanha mas assombraram o Mundo, com uma travessia oceânica, «cúmulo de energia e arrojo». Para lhe abrir com a sua esquadra o caminho do seu «Mar del Sul», e lá descobrir «tierras e islas», foi preciso lutar, com braço e alma de aço, contra uma rebelião dos companheiros espanhóis, realizando depois a parte mais longa e mais árdua da viagem à volta do Mundo.
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Pois nada disto impediu historiadores de tentarem diminuir o feito pessoal do português Magalhães — «façanha que supera todas as proezas de sua época» — escreveu Stefan Zweig — a fim de disfarçar a oposição levantada pelos oficiais da frota na busca de uma passagem para oeste do Atlântico, a ponto de a maior das naus ter desertado para Espanha! E tanto que, quando depois, pela chegada lá da «Victoria», se soube a verdade, os autênticos traidores nem foram punidos pelas suas calúnias contra o heróico capitão-mor.
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Certo, o papel de quem levou a «Victoria» a Espanha, por caminho já muito trilhado por outros mareantes, foi na verdade secundário, se o compararmos com aquele desempenhado por Magalhães. Porque este, chefe e navegador, tendo vencido elementos e homens, acabou perdendo a vida em luta pela Espanha. O que por ela não foi exaltado, só para evitar que o sucesso da mais difícil parte da viagem, chefiada por Magalhães, pudesse recair sobre um não espanhol.
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Assim, na sua famosa navegação, escasso de recursos, explorando um nova [sic] canal, e cortando um desconhecido oceano, longe de nos «atraiçoar», abrindo aos rivais espanhóis os portos orientais, aquele audacioso chefe de bronze, que foi Magalhães, queimando a sua vida, até nos ampliou o Brasil. E devemos orgulhar-nos de que também tivesse sido português o primeiro capitão-do-mar a passar com uma esquadra do Atlântico para o Pacífico, como já foram portugueses aqueles que o fizeram para o oceano Índico.Tal é o elevado conceito que, quando for gravado na base do Monumento, concretizará a incontestável glória da figura mundial, que foi o navegador português Fernão de Magalhães!»
Gago Coutinho (Almirante), A Náutica dos Descobrimentos, vol. II, Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1969, pp. 119-135 passim.
Inauguração da estátua de Fernão de Magalhães, Praça do Chile, 1950.
Judah Benoliel, in archivo photographico da C.M.L.